terça-feira, 26 de agosto de 2014

Eu passei dois anos me identificando como homem

O que estou prestes a dizer é complicado, me expõe num nível que eu gostaria de jamais fazer e provavelmente não vai atingir meus objetivos, mas eu preciso tentar. Eu preciso tentar falar para mulheres que talvez vão se identificar com o que vivi. E, se assim for, você provavelmente desprezará tudo o que ler, como eu fiz quando assisti um documentário anos atrás que dizia algo parecido. Mas talvez, assim como eu me lembro, você se lembre desse texto daqui alguns anos quando fizer as pazes consigo mesma.

Eu nunca havia pensado na ideia de ser transsexual, e o conceito parecia um tanto distante da minha realidade. Na época, eu não me identificava como nada (tinha dúvidas inclusive sobre minha sexualidade), mas era lida como lésbica butch. Eu havia dado meus primeiros passos no feminismo há algum tempo quando de fato conheci, através da Internet, um homem trans. Fiquei fascinada e curiosa sobre sua vida, sobre a qual eu tinha bastante material pra stalkear. Parecia tão fácil, ele era tão feliz! Eu odiava minha vida. Eu já conhecia o suficiente de feminismo pra ter consciência que o mundo é uma bosta para as mulheres. Eu já odiava meu corpo profundamente. Eu gostava de me vestir de forma masculina. Juntar as três coisas e mudar o foco do meu ódio para meus órgãos sexuais não foi difícil, quando existia a promessa de uma vida mais fácil ao meu alcance assim que eu conseguisse ser vista como homem.



Não foi rápido como soa. Foram meses de um doloroso questionamento até que eu enfim decidisse me apresentar como homem e procurasse o tratamento adequado. Graças à demora do SUS eu não comecei a tomar hormônios que causariam mudanças permanentes no meu corpo. Claro que eu descobri que ser homem é ser privilegiado, mas ser um homem trans que ainda não sofreu nenhuma modificação e ainda é lido como mulher não é nem um pouco mais fácil. Foram cerca de dois anos em que eu de fato *me sentia* homem, sofria muito com a disforia (não fiz sexo nenhuma vez nesse período), me sentia invalidada ao sempre ouvir os pronomes errados e com a transfobia em geral (saí do armário pra minha mãe, que perguntou por que eu não podia apenas “ser normal”). Eu também sentia que “finalmente estava sendo eu mesmo”.

É por isso que eu não compro mais essa ideia de “se sentir” de um gênero. O que era me sentir homem? Eu estava cansada da obrigação social de me comportar como uma mulher, ser feminina e tudo o que essa palavra implica. Eu não era daquela forma e nem queria ser, e segundo tudo o que eu estava lendo na época, isso só podia significar que eu era trans. Se fosse hoje em dia, provavelmente teria me decidido por não-binário. Eu me senti homem por um bom tempo e isso não mudou a violência que eu sofria, não mudou os comportamentos que eu tinha e tenho apenas pela socialização feminina (caras trans são tão menos babacas que caras cis, né? por que será?) e apenas me fez sentir culpada pelo machismo e misoginia do mundo, como se a culpa fosse minha também. Claro que eu não estava livre da óbvia misoginia internalizada que leva uma mulher a odiar seu sexo com tanta intensidade, nem de reproduzir machismos porque é assim que se é lido como homem, mas hoje em dia tenho apenas pena da minha inocência em achar que estava fazendo parte do grupo opressor, como querem fazer caras trans acreditarem.

Tive que começar a trabalhar, onde me apresentava como mulher. Com o tempo, passei a usar roupas femininas também fora do trabalho, porque ainda que eu me sentisse homem e quisesse ser assim tratado, “roupas não têm gênero”, eu dizia, mas era mais pela praticidade mesmo. O alívio que eu sentia era muito pequeno comparado ao quão difícil era a vida sendo lida como trans e ao incômodo físico de usar binder. Claro que isso não me passou despercebido e voltei a questionar meu gênero. Mas, devo dizer, a segunda vez é ainda mais difícil. Toda vez que pensava que talvez eu tivesse me enganado, estivesse apenas confusa e vulnerável, eu pensava também que ouviria pessoas dizendo que fiz isso por atenção ou que foi uma fase adolescente (que é o que está acontecendo e o que me fez acabar postando esse texto) - como disseram quando eu me assumi trans, que era apenas uma brincadeira. Eu estaria provando-os certos se voltasse atrás, ainda que todo o meu sofrimento e confusão tivessem sido reais. Então eu não disse nada pra ninguém e continuei apenas me vestindo como queria (de forma feminina) e usando os mesmos pronomes.

Eventualmente eu voltei a usar pronomes femininos para me referir a mim mesma e as pessoas entenderam e voltaram a me tratar como mulher. Meus amigos não tocaram no assunto (e sou grata a eles por isso, seria muito constrangedor), e essa é a primeira vez que falo sobre. Não porque eu não queria, mas eu realmente não fazia ideia do que havia acontecido. Eu não sabia explicar de onde veio a disforia e como eu voltei a me aceitar, eu tinha vergonha de tudo isso e sentia que a minha mera existência era um desrespeito a pessoas trans - assim como imagino que serei interpretada com esse texto.

Eu questionei minha identidade profundamente em diversos aspectos e não encontrei explicação, então decidi aceitar a explicação mais fácil: eu quis deixar de ser mulher porque na nossa sociedade não há motivos para querer ser. Eu não lembro muito do documentário que mencionei no início do texto, mas uma frase, dita por uma lésbica butch, nunca me saiu da cabeça: “se me fosse dada a oportunidade de virar homem quando eu tinha vinte anos, eu teria dito ‘por favor!’”. Me foi dada a oportunidade e eu a agarrei, porque eu já não via nenhuma vantagem em ser mulher enquanto poderia enumerar dezenas em não ser, mas acho que só “andar na rua sem sentir medo de violência o tempo todo” já seria o suficiente. O problema é que ser lido como uma “mulher masculina” não te priva nem um pouco desse medo, só aumenta. Talvez, se eu tivesse iniciado hormonização logo e passado a ser lida como homem, eu estaria até hoje feliz com essa identidade e aproveitando meu privilégio masculino. Nunca saberei. Estou feliz assim. Ainda odeio meu corpo, mas agora pelos motivos que a sociedade impôs que todas as mulheres se odiassem.

O que quero com esse texto? Que ele possivelmente seja lido por alguém na situação em que eu estava anos atrás, e que essa pessoa questione seu questionamento (logo depois de, com certeza, me mandar tomar no cu). Eu sei que seu sofrimento é real, que a disforia é real, que agora que você sabe que existe uma alternativa é difícil ignorar. E talvez esse seja seu caminho mesmo. Mas antes de tomar qualquer decisão que possa te afetar permanentemente, analise as possibilidades sem julgamentos.

segunda-feira, 25 de agosto de 2014

Por quê estar bonita não me empodera

Recentemente, em um grupo feminista que participo - mas poderia ser qualquer outro grupo de mulheres - alguém perguntou o que nos fazia sentir empoderadas. Eu gostaria de começar essa frase com “entre outras coisas”, mas não foi o que aconteceu; todos os comentários diziam, de alguma forma, que estar mais bonita do que se é “naturalmente” faz com que as mulheres se sintam empoderadas. Maquiagem foi o mais mencionado, além de roupas bonitas, salto alto, fazer a sobrancelha e cortar ou pintar o cabelo.

Não é difícil chegar ao porquê disso. A sociedade nos quer bonitas, delicadas, femininas, além de, claro, brancas e magras. É esse o papel que o patriarcado designou às mulheres, e nos ater a ele faz com que sejamos melhor aceitas (se você já viu uma vaga de emprego que pedia “boa apresentação” e pensou duas vezes antes de mandar seu currículo, sabe do que estou falando). O que me escapa é onde está o empoderamento nisso tudo. Eu não deveria me sentir empoderada quando subverto esses padrões ao invés de quando cedo a eles?

Sim, eu me acho bonita de salto, às vezes uso em casa só ~pra ver como fica~. Mas não me sinto empoderada quando estou na rua de salto e sei que não vou conseguir correr se me sentir em perigo. Eu me acho bonita de maquiagem, mas conheço mulheres que se vão trabalhar um dia sem, têm que responder que não estão doentes nem tristes, só sem maquiagem. Eu gosto de usar roupas bonitas, mas dependendo do seu tamanho o “empoderamento” nesse quesito fica bastante limitado nas lojas. Além disso, tudo isso depende de dinheiro, tornando esse dito empoderamento ainda mais inacessível.

Mulheres podem e devem fazer o que for para se sentirem melhores nessa sociedade machista, mas vale questionar quanto dessa sensação de empoderamento não vem apenas da pseudo aceitação que a sociedade despeja àqueles que fazem o que é “certo”. Se estou fazendo o que é esperado de mim, onde está o meu poder de decisão? O patriarcado não nos dá escolha quando associa o valor de uma mulher à sua aparência.  Uma pena que esse suposto valor e aceitação só duram enquanto você consumir produtos que te deixem bonita - mas não demais, afinal ninguém quer uma mulher fútil. Não tem como sair ganhando.

Eu me sinto empoderada quando consigo sair de casa com uma roupa que mostra ao invés de esconder o que é considerado defeito no meu corpo. Quando não tenho medo de levantar a voz pra falar minha opinião. Quando consigo ajudar outra mulher em algo. Quando estou em ambientes feministas. Quando passo na frente de uma igreja evangélica e beijo minha namorada, por mais pirraça que seja. Quando não me depilo e não escondo isso, quando saio sem maquiagem sem me importar se vão me achar feia. Eu me sinto empoderada quando faço o que a sociedade não gosta que uma mulher faça, não o que ela exige que eu faça exatamente por ser mulher.



“Thank God I'm pretty
The occasional free drink I never asked for
The occasional admission to a seedy little bar
Invitation to a stranger's car
I'm blessed with the ability to render grown men tongue-tied
Which only means that when it's dark outside I have to run and hide
Can't look behind me
Thank God I'm pretty”

(Emilie Autumn)